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quinta-feira, 31 de outubro de 2013

A Chave - Gugu Peixoto


Balas de Estalo - Machado de Assis [parte 5]

Nisto aparece um respeitável ancião que declara possuir um segredo para salvar tudo, o Estado e a vida do ministro. Este manda-o embora, abre a janela e contempla a forca.
- Daqui a dez minutos serei cadáver, murmura ele.
-Não! brada uma voz.
Era uma fada, a fada Argentina,-que, enamorada da beleza do ministro. vem oferecer-lhe um talismã, ensinando-lhe que, sempre que bater com ele no ombro de Triptolemo, as algibeiras deste regurgitarão de ouro. O ministro recusa crer; mas a fada pede-lhe que vá verificá-lo e desaparece.
Nove horas e onze minutos. Entra Triptolemo: fora ouvem-se os berros dos credores, o paço está prestes a ser assaltado. Então o ministro pede licença a Triptolemo. bate-lhe no ombro, e as algibeiras régias começam a entornar moedas de ouro. Estupefação do rei e do ministro. Outro toque, outra emissão, e as moedas correm, descem, amontoam-se. São ducados, libras, florins, liras, duros, rublos, thalers é tudo, são milhões, vinte milhões, duzentos milhões, quinhentos milhões. Triptolemo paga aos credores juros e capital, casa a filha e o talismã é guardado nas arcas do Estado como um recurso para os lances difíceis.
No fim, aparece outra vez o ancião respeitável e confessa em público e raso que o seu meio, posto que eficaz, era muito mais lento.

Balas de Estalo - Machado de Assis [parte 4]

- Pobre Lulu Sênior! Que faremos então?
-Sujeitá-lo a um regime rigoroso. Eu creio que os excessos da mesa, os comes e bebes, é que o têm perdido. O ilustre Maudsley vem em apelo da minha opinião, no seu magnífico livro: "Se os homens (diz ele) quisessem viver com sobriedade e castidade, diminuiria logo o número dos loucos, e mais ainda na geração seguinte". E ele aconselha aos homens uma coisa a que chama self-restraint restringir-se, abster-se. Entende-me?
-Perfeitamente.
-Ora bem; é o que convém aplicar ao seu amigo. Nada de finos pratos, nem borgonha, nem champanha, deem-lhe durante seis meses bacalhau de porta de venda e vinho de Lisboa fabricado no Rio de Janeiro; podem mesmo aumentar no vinho a dose tóxica, com um ou dois decigramas de pau-campeche por litro, ou meio decigrama de estricnina: é a mesma coisa.

Balas de Estalo - Machado de Assis [parte 3]

Os secretas compreenderam que a primeira condição de uma polícia secreta era ser secreta. Para isso era indispensável, não só que ninguém soubesse que eles eram secretas, como até que nem mesmo chegasse remotamente a suspeitá-lo. Como impedir a descoberta ou a desconfiança? De um modo simples: - gritando: Sou secreta! os secretas deixavam de ser secretas, e, sabendo o público que eles Já não eram secretas, agora é que eles ficavam verdadeiramente secretas. Não sei se me entendem. Eu não entendi nada.
Mas, neste assunto, tudo o que se possa dizer não vale a cena, que se deu há cinco ou seis anos, na Rua da Uruguaiana. Está nos jornais do tempo. Um grupo de homens do povo perseguia a um indivíduo, que acusavam de ter praticado um furto. Os perseguidores corriam gritando: Ésecreta! é secreta! Perto da Rua do Ouvidor, conseguem apanhar o fugitivo, e aparece um urbano. Este chega, olha para o perseguido, e, com um tom de repreensão amiga: - Deixa disso, Gaudêncio!
Polícia secreta, que se divulga, ministros de uma república, que matam o presidente, eis aí dois fenômenos que comprovam aquele dito do Cardeal Antonelli: il mondo casca. Que diria o bom cardeal, se visse, como vi há dias, um frade dentro de um tílburi? É verdade que chovia, e que a chuva, quando cai, não poupa ninguém ;pode ser mesmo que a coisa não encontre oposição nos cânones. Mas para mim a questão é de estética. Há em mim um resto de costela romântica, que não permite frade fora do mosteiro. Concedo-lhe que ande a pé, concedo-lhe um cavalo, uma cama, um refeitório; mas homem, tílburi!

Balas de Estalo - Machado de Assis [parte 2]

À vista destes deploráveis exemplos quer-me parecer que Sganarello e Molière não fariam tão má figura na Câmara dos Comuns...
*
Não vamos agora dar um banquete ao Sr. Pedrosa só para imitar os ingleses.
*
Um articulista anônimo, tratando há dias do uso da folga acadêmica nas quintas-feiras, escreveu que Moisés e Cristo só recomendaram um dia de descanso na semana, e acrescenta que nem Spencer nem Comte indicaram dois.
Nada direi de Spencer; mas pelo que respeita a Comte, nosso imortal mestre, declaro que a afirmação é falsa. Comte permite (excepcionalmente, é verdade) a observância de dois dias de repouso. Eis o que se lê no Catecismo do grande filósofo.
O dia de descanso deve ser um e o mesmo para todas as classes de homens. Segundo o judaísmo, esse dia é o sábado; - e segundo o cristianismo, é o domingo. 0 positivismo pode admitir, em certos casos, a guarda do sábado e do domingo, ao mesmo tempo. Tal é, por exemplo, o daquelas instituições criadas para a contemplação dos filhos da Grã-Bretanha, como sejam, entre outras, os parlamentos de alguns países, etc. E a razão é esta. Sendo os ingleses, em geral, muito ocupados, pouco tempo lhes resta para ver as coisas alheias. Daí a necessidade de limitar os dias de trabalho parlamentar dos ditos países, a fim de que aqueles insulares possam gozar da vista recreativa das mencionadas instituições. (Cat. Posit., p. 302).
Rio de Janeiro, 3 do Brigadeiro José Anastácio da Cunha Souto de 94 (14 de agosto de 1883) .

Balas de Estalo - Machado de Assis [parte 1]

1883

[2 julho]
SABE-SE que a Sociedade Portuguesa de Beneficência acaba de abrir uma enfermaria à medicina dosimétrica. Este é o nome, creio eu; e não há por onde trocar os nomes às coisas, que já os trazem de nascença.
Mas não basta abrir enfermarias; é útil explicá-las. Se a dosimetria quer dizer que os remédios dados em doses exatas e puras curam melhor ou mais radicalmente, ou mais depressa, é, na verdade, grande crueza privar os restantes enfermos de tão excelso benefício. Uns ficarão meio curados, ou mal curados, outros sairão dali lestos e pimpões; e isto não parece justo.
Note-se bem que eu não ignoro que os doentes, por estarem doentes, não perdem o direito à liberdade; mas, entendamo-nos: é a liberdade do voto, a liberdade de consciência, a liberdade de testar, a liberdade do ventre (teoria Lulu Sênior); por um sentimento de compaixão, a liberdade de descompor. Mas, no que toca aos medicamentos, não! Concedo que o doente possa escolher entre a alopatia e a homeopatia, porque são dois sistemas, - ou duas escolas, - a escola cadavérica (versão Maximiano) e a escola aquática. Mas não tratando a dosimetria senão da perfeita composição dos remédios, não há, para o doente, a liberdade de medicar-se mal. Ao contrário, este era o caso de aplicar o velho grito muçulmano: - crê ou morre.
Se, ao menos, a própria dosimetria permitisse o uso de ambos os modos, as doses bem medidas, e as doses mal medidas, tinha a enfermaria uma explicação. E não seria absurdo. Conheci um médico, que dava alopatia aos adultos, e homeopatia às crianças, e explicava esta aparente contradição com uma resposta épica de ingenuidade: - para que hei de martirizar uma pobre criança? A própria homeopatia, quando estreou no Brasil, teve seus ecléticos; entre eles, o Dr. R. Torres e o Dr. Tloesquelec, segundo afirmou em tempo (há quarenta anos) o Dr. João V. Martins, que era dos puros. Os ecléticos tratavam os doentes, "como a eles aprouvesse". É o que imprimia então o chefe dos propagandistas.

quarta-feira, 30 de outubro de 2013


Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 36]

- Mas se não ignora Deus, porque lhes não fala d'Ele? - inquiriu o Selvagem, indignado. - Porque lhes
não dá esses livros acerca de Deus?
- Por uma razão semelhante à que nos leva a não lhes dar
Othello: são velhos, tratam de Deus tal como era há centenas de anos, não de Deus tal como é
presentemente.
- Mas Deus não muda.
- Mas mudam os homens.
- E que diferença faz isso?
Um mundo inteiro de diferença - disse Mustafá Mond. Voltou a levantar-se para ir ao cofre-forte. -
Houve um homem, que se chamou cardeal Newman(1). Um cardeal - exclamou como num parêntesis -
era uma espécie de arquichantre.
(1) Newman (john Henry), cardeal e teólogo inglês, nascido em Londres. Criador de uma nova
apologética e autor de Apologia pro Vita Sua (1801-1890).
- Eu, Pandolfo, da bela Milão cardeal. - Li coisas acerca'@ dele em Shakespeare.
- Certamente. Pois bem! Como ia dizendo, havia um homem que se chamava cardeal Newman. Ah, cá
está o livro.
- Tirou-o do cofre. - E, já que estou aqui, vou tirar este também.
É de um homem que se chamava Maine de Biran(2). Era um filósofo. Creio que sabe o que isso
significa.

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 35]


- Mas ele tem razão - concordou Helmholtz com uma tristeza sombria. - É realmente idiota. Escrever
quando se não tem nada a dizer...
- Exatamente. Mas isso exige uma habilidade extraordinária. Fabricamos calhambeques com o
mínimo possível de aço, obras de arte utilizando apenas sensação pura.
O Selvagem abanou a cabeça.
- Tudo isso me parece absolutamente horrível.
- Sem dúvida. A felicidade real parece sempre bastante sórdida quando comparada com as largas
compensações que se encontram na miséria. E é evidente que a estabilidade, como espetáculo, não
chega aos calcanhares da instabilidade. E o fato de se estar satisfeito não tem nada do encanto mágico
de uma boa luta contra a desgraça, nada do pitoresco de um combate contra a tentação ou de uma
derrota fatal sob os golpes da paixão ou da dúvida. A felicidade nunca é grandiosa.
- É evidente - concordou o Selvagem, depois de um silêncio. - Mas será indispensável atingir o grau de
horror de todos estes gêmeos? - Passou as mãos pelos olhos como se tentasse apagar a lembrança da
imagem daquelas longas fileiras de anões idênticos nos bancos de montagem, daquelas manadas de
gêmeos em bicha na estação do monocarril de Brentford, daquelas larvas humanas invadindo o leito de
morte de Linda, do rosto indefinidamente repetido dos assaltantes. Olhou a mão esquerda coberta por
um penso e estremeceu. - Horrível!

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 34]


- Ouçam-me, suplico-lhes - gritou o Selvagem com ardor veemente. - Emprestem-me os ouvidos ...
Nunca falara em público e tinha muita dificuldade em exprimir o que queria dizer. - Não tomem essa
nefasta droga. É veneno, é veneno.
- Diga-me, senhor Selvagem - interveio o subecónomo interino, abrindo um sorriso conciliador -, não o
incomodaria deixar-me...
- Veneno para a alma, assim como para o corpo.
- Sim, mas deixe-me continuar a minha distribuição. Seja delicado. - Ternamente, prudentemente,
como quem acaricia um animal que se sabe que é mau, deu palmadinhas no braço do Selvagem. -
Deixe-me lá ...
- Nunca! - bradou o Selvagem.
- Mas então, meu velho ...
- Atire fora tudo isso, esse horrível veneno! As palavras «atire fora» conseguiram furar as camadas
envolventes de incompreensão, penetrando violentamente na consciência dos Deltas. Um murmúrio
irado elevou-se da multidão.
- Venho trazer-lhes a liberdade - disse o Selvagem, dirigindo-se aos gêmeos. - Venho ...
o subecónomo interino não quis ouvir mais; deslizou sem ruído para fora do vestíbulo e procurou um
número na lista telefônica.
- Não está no apartamento dele - resumiu Bernard. - Também não está no meu, e no seu também não.
Não está no Aphroditacum, nem no centro, nem no colégio. Onde diabo se terá metido?

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 33]

Um ruído súbito de vozes agudas forçou-o a abrir os olhos e, depois de ter apressadamente enxugado as
lágrimas, a voltar-se. O que parecia ser um fluxo contínuo de gêmeos machos, idênticos, de oito anos,
engolfava-se no aposento. Gêmeo após gêmeo, gêmeo após gêmeo, entravam, autêntico pesadelo. O
rosto, este rosto que se repetia, porque só havia um rosto para
todos, arregalava-se, nariz achatado, só narinas, e olhos pálidos e redondos como vidros de óculos. O
uniforme era de caqui. Tinham todos a boca aberta e o lábio caído. Entraram chilreando e palrando. Ao
cabo de um momento parecia que a sala fervia. Amontoavam-se em cachos entre os leitos, subiam para
cima deles, arrastavam-se por baixo, olhavam para os receptores de televisão, faziam caretas aos
doentes.
Ao verem Linda, surpreenderam-se e deram mostras de uma certa inquietação. Um grupo ficou junto
do leito, encarando-a com a curiosidade medrosa e estúpida dos animais que defrontam
inesperadamente o desconhecido.
- Oh! Olhem, olhem! - Falavam em voz baixa e espantada.
- Mas que é que ela tem? Porque será ela assim tão gorda?
Nunca tinham visto um rosto parecido com o de Linda, nunca tinham visto um rosto que não fosse
jovem, que não tivesse a pele lisa, nem corpo que não fosse fino e aprumado. Todas aquelas
sexagenárias moribundas tinham o ar de raparigas quase crianças. Com quarenta e quatro anos, Linda
parecia ser, por contraste, um monstro de senilidade flácida e desengonçada.
- Não é verdade que ela é horrível) - Tais eram os comentários sussurrados. - Olhem para os dentes
dela!
De repente, de sob a cama, um gêmeo de rosto achatado apareceu entre a cadeira de John e a parede e
pôs-se a contemplar o rosto adormecido de Linda.
- Diga-me então... - começou ele. Mas a frase terminou prematuramente num guincho.
O Selvagem tinha-o agarrado pela gola do casaco e com uma bofetada sonora afugentara-o aos berros.
Os gritos chamaram a atenção da enfermeira-chefe, que se precipitou em seu socorro.
- Que foi que lhe fez? - perguntou, enfurecida. - Não admito que bata nas crianças!
- Está bem! Mas então afaste-as desta cama. - A voz do Selvagem tremia de indignação. - E, além
disso, que fazem aqui estes fedelhos repugnantes? É vergonhoso!
- Vergonhoso? Mas que quer dizer? Condicionamo-los para a morte. E deixe-me dizer-lhe - continuou
num tom de advertência feroz - que, se o apanho outra vez a perturbar o seu condicionamento, chamo
os carregadores e mando-o pôr na rua. 

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 32]

- Mas nós aqui temos aspiradores - observou Lenina, assombrada -, e isso não é necessário.
Não, já se vê que não é necessário. Mas há algumas coisas vis que se suportam nobremente. Eu quisera
suportar qualquer coisa nobremente. Não me compreende?
- Mas desde que existem aspiradores ...
- Não é essa a questão.
- E Epsilões semiabertos para os fazer funcionar - continuou ela. - Assim, na verdade, porquê? -
- Porquê? Mas por si, por si! Apenas para provar que eu...
- E que relação poderá existir entre os aspiradores e os leões?
- Para lhe provar quanto...
- Ou entre os leões e o fato de estar contente por me ver? Ela exasperava-se cada vez mais.
- Como eu a amo, Lenina - conseguiu ele dizer, quase em desespero de causa.
Como um reflexo da sua fremente alegria interior, o sangue coloriu as faces de Lenina.
É verdade, John? Mas não tinha a intenção de o dizer - gritou o Selvagem, unindo as mãos como num
paroxismo de dor. - Não antes de ... Ouça, Lenina: em Malpaís as pessoas casam-se.
- As pessoas ... quê? - A irritação recomeçou a invadir-lhe a voz. De que estaria ele a falar agora?
- Para sempre. As pessoas prometem viver juntas para sempre.
- Que ideia horrorosa! - Lenina estava sinceramente escandalizada.
- Durando mais que o brilho exterior da beleza, com uma alma que se renova mais depressa que o
sangue se destrói'.

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [ parte 31]

Bernard teve como segundo amigo-vítima Helmholtz. Quando, derrotado, voltou a procurar esta
amizade que, na prosperidade, não tinha considerado útil conservar, Helmholtz tornou a dar-lha. E
restituiu-lha sem uma censura, sem um comentário, como se tivesse esquecido que houvera entre eles
um desentendimento. Comovido, Bernard sentiu-se ao mesmo tempo humilhado por esta
magnanimidade, magnanimidade tanto mais extraordinária e por isso tanto mais humilhante por não ser
devida ao soma, mas sim e inteiramente ao caráter de Helmholtz. Era o Helmholtz da vida quotidiana,
que esquecia e perdoava, não o Helmholtz das fugas proporcionadas por meio grama de soma. Bernard
mostrou-se grato, como devia - era um grande conforto voltar a encontrar o amigo -, mas também
saturado de ressentimento - seria um prazer vingar-se de Helmholtz e da sua generosidade.
Por ocasião do seu primeiro encontro depois da separação, Bernard contou-lhe a história das suas
misérias e aceitou as consolações oferecidas. Só alguns dias depois veio a saber, com espanto e com
vergonha lancinante, que não era o único que estava em dificuldades. Também Helmholtz estava em
conflito com a Autoridade.
- Foi a propósito de alguns versos - explicou Helmholtz. - Estava a fazer o meu curso habitual de
Técnica Emocional, o curso superior para os estudantes do terceiro ano. Doze conferências, das quais a
sétima trata de versos. «Do Emprego dos Versos na Propaganda Moral e na Publicidade», para ser
exacto. Ilustro sempre as minhas conferências com uma grande quantidade de exemplos técnicos. Desta
vez pensei em dar-lhes um que eu mesmo tinha escrito. Era pura loucura, bem entendido, mas não fui
capaz de resistir. - Pôs-se a rir. - Tinha curiosidade de ver quais seriam as reações dos alunos. Além
disso - acrescentou mais gravemente -, queria fazer uma propagandazinha;
tentava levá-los a sentir o que eu tinha sentido ao escrever os versos. Ford! - Riu-se outra vez. -

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 30]

Mas para Lenina a borboleta não morreu completamente. Mesmo depois de as luzes se terem acendido,
enquanto caminhavam lentamente com a multidão que se dirigia aos elevadores, o fantasma palpitava
ainda nos seus lábios traçando ainda na sua pele finos arabescos frementes de angústia e de prazer. Ela
tinha as faces coradas, os olhos como que molhados pelo orvalho e ofegava profundamente. Agarrou o
braço do Selvagem e apertou-o, inerte, contra o corpo. Ele baixou os olhos um segundo para ela,
pálido, dolorido, cheio de desejo e envergonhado desse desejo. Ele não era digno, não era... Os seus
olhares cruzaram-se um momento. Que tesouros prometiam os de Lenina! Quanto a temperamento,
eram dignos do resgate de uma rainha! Ele apressou-se a desviar os olhos e soltou o braço que ela
mantinha prisioneiro. Sentia obscuramente o receio de que ela deixasse de ser qualquer coisa de que
pudesse julgar-se indigno.
- Acho que não deveríamos ver semelhantes coisas - disse ele, apressando-se em transferir de Lenina
para as circunstâncias ambientais a censura devida a qualquer imperfeição passada ou possível no
futuro.
- Semelhantes a quê, John?
- A este horrível filme.
- Horrível? - A admiração de Lenina era sincera. - Pois eu achei-o encantador.
- Era vil - retrucou ele, indignado -, era ignóbil. Ela sacudiu a cabeça.
- Não sei que quer dizer... - Porque era ele tão estranho? Porque se empenhava em estragar as coisas?
No taxicóptero, ele mal a olhou. Enredado por votos poderosos que nunca tinha pronunciado,
obedecendo a leis que tinham caído em desuso há muito tempo, ficou sentado, desviando
silenciosamente os olhos. Às vezes, como se um dedo tocasse numa corda tensa, prestes a romper-se,
todo o seu corpo era abalado por um brusco sobressalto nervoso.

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 29]

Era preciso que aquele homem tivesse enlouquecido. «Seria bom dar-lhe uma lição», pensou. Depois
atirou a cabeça para trás e rebentou em altas gargalhadas. Por enquanto, pelo menos, a lição não seria
dada.
Encontravam-se numa pequena fábrica de artefatos de iluminação para helicópteros, uma sucursal da
Companhia Geral de Acessórios Elétricos. Foram recebidos no próprio terraço (pois a carta-circular
de recomendação enviada pelo Administrador era de efeitos mágicos) pelo técnico-chefe e pelo
diretor do Elemento Humano. Desceram para a fábrica.
- Cada operação - explicou o diretor do Elemento Humano - é executada, tanto quanto possível, por
um único grupo Bokanovsky.
Efetivamente, oitenta e três Deltas braquicéfalos negros, quase sem nariz, estavam ocupados na
laminagem a frio. Os cinquenta e seis tornos de bancada, de quatro brocas, eram atendidos por
cinquenta e seis Gamas aquilinos e cor de gengibre.
Cento e sete Epsilões senegaleses condicionados para o calor trabalhavam na fundição. Trinta e três
mulheres Deltas, de cabeça alongada, cor de areia, pélvis estreita, todas com a estatura de um metro e
sessenta e nove centímetros, com cerca de vinte milímetros de diferença torneavam parafusos. Na sala
de montagem, os dínamos eram montados por duas turmas de anões Gamas-Mais. As duas armações
baixas estavam frente a frente; entre elas avançava lentamente o transportador de correia, com a sua
carga de peças soltas. Quarenta e sete cabeças louras estavam em frente de quarenta e sete cabeças
morenas; quarenta e sete narizes achatados tinham à sua frente quarenta e sete narizes aduncos;
quarenta e sete queixos fugidios opunham-se a quarenta e sete prognatas. Os mecanismos
completamente montados eram examinados por dezoito raparigas de cabelos castanhos e ondulados,
vestidas de verde-gama, embalados nos quadros por trinta e quatro homens Deltas-Menos, de pernas
curtas e arqueadas, e carregados nas plataformas e nos camiões que estavam à espera por sessenta e três
Epsilões, semiabortos de olhos azuis, cabelos como fios de estopa e pele cheia de sardas.

Admirável Mundo Novo - Adous Huxley [parte 28]

- Um exemplo público - dizia ele. - Nesta sala, visto haver nela mais trabalhadores das castas
superiores que em todas as outras do centro. Disse-lhe para me procurar aqui às duas e meia.
- Ele faz muito bem o seu trabalho - disse Henry, intervindo com uma generosidade hipócrita.
- Bem sei. Mais uma razão para procedermos com mais severidade. A sua elevada condição intelectual
cria também responsabilidades morais. Quanto maior é a capacidade de um homem, mais
possibilidades tem de desencaminhar os outros.
Mais vale o sacrifício de um só que a corrupção de muitos. Encare o caso desapaixonadamente, senhor
Foster, e verificará que não há crime mais odioso que a falta de ortodoxia na conduta.
O assassínio mata apenas o indivíduo. E que significa, afinal de contas, um indivíduo? - Com um gesto
largo, designou as fileiras de microscópios, de tubos de ensaio, de incubadores. - Sabemos produzir um
indivíduo novo com a maior facilidade, tantos quantos quisermos. A falta de ortodoxia ameaça coisas
que ultrapassam a vida de um simples indivíduo: atinge a própria sociedade. Sim, a própria sociedade -
repetiu. - Ah! Mas aí vem ele.
Bernard entrara na sala e dirigiu-se para eles por entre as fileiras de fecundadores. Uma frágil camada
de segurança pretensiosa mal conseguia disfarçar o seu nervosismo. O tom de voz em que disse "Bom
dia, senhor Diretor" era absurdamente forte. Por isso, retificando o seu erro, disse num tom
ridiculamente suave, um pequeno guincho de ratinho: - O senhor pediu-me que viesse aqui falar-lhe.
- Sim, senhor Marx - concordou o Diretor com voz de mau agouro -, pedi-lhe, efetivamente, que me
procurasse aqui.
O senhor regressou da sua licença ontem à noite, não é verdade?

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [arte 27]

- Até à vista - disse em tom protetor ao conservador, que o acompanhara até à porta do ascensor. - Até
à vista.
Foi a pé até ao hotel, tomou banho, uma vibromassagem por vácuo, barbeou-se com o aparelho
electrolítico, ouviu pela T. S. F. as notícias da manhã, ofereceu-se uma meia hora de televisão,
saboreou longamente o almoço e, às duas e meia, iniciou, com o mestiço, o voo de regresso a Malpaís.
O rapaz estava diante da pousada.
- Bernard - gritou ele. - Bernard! - Mas ninguém lhe respondeu.
Silenciosamente, calçado com os sapatos de camurça, subiu a correr os degraus e tentou abrir a porta.
Estava fechada à chave.
Tinham partido! Partido! Era a coisa mais terrível que lhe acontecera até então. Ela pedira-lhe para os
vir ver, e eis que tinham partido. Sentou-se nos degraus da escada e chorou.
Uma meia hora depois teve a ideia de espreitar pela janela. A primeira coisa que viu foi uma maleta
verde, com as iniciais L. C. pintadas na tampa. A alegria explodiu nele como uma chama que se aviva.
Apanhou uma pedra. O vidro estilhaçado retiniu no chão. Instantes depois estava dentro do quarto.
Abriu a maleta verde, e repentinamente respirou o perfume de Lenina, enchendo os pulmões com o seu
ser essencial. Sentiu o coração bater desordenadamente, quase desmaiou. Depois, inclinando-se para a
preciosa caixa, apalpou-a, ergueu-a contra a luz, examinou-a. Os fechos éclair no calção de veludo de
algodão de viscose que Lenina trouxera de reserva com ela foram inicialmente para ele um enigma.
Depois, resolvido o enigma, um deslumbramento. Zip e ainda zip; zip, e outra vez zip. Estava
encantado. As chinelas verdes da rapariga eram a coisa mais bela que jamais vira. Desdobrou uma
combinação-calça com fecho éclair, corou e repô-la precipitadamente no lugar, mas beijou um lenço de
acetato, perfumado, e pôs uma mantilha no pescoço. Abrindo uma caixa, espalhou uma nuvem de pó
perfumado. E ficou com as mãos brancas, como se as tivesse mergulhado em farinha. Limpou-as no
peito, nos ombros, nos braços nus. Deliciosos perfumes! Fechou os olhos e esfregou a cara contra o
braço empoado. Contacto de uma pele macia contra a sua face, poeira de perfume almiscarado nas suas
narinas - a sua presença real! « Lenina - murmurou -, Lenina. »
Um ruído sobressaltou-o, obrigando-o a voltar-se com uma sensação de culpa. Enfiou rapidamente o
produto do seu roubo na maleta e fechou a tampa. Depois voltou a escutar, olhou. Nenhum sinal de
vida, nenhum rumor. E tinha, todavia, a certeza de ter ouvido qualquer coisa, qualquer coisa que se
assemelhava a um suspiro, qualquer coisa que se assemelhava a um estalar do soalho. Pôs-se na ponta
dos pés para ir até à porta, que abriu com precaução, para se encontrar diante de um largo patamar. No
lado oposto havia outra porta, entreaberta. Saiu, empurrou-a e espreitou. 

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 26]

Um dia em que entrou em casa depois de ter brincado, a porta do quarto estava aberta e viu-os deitados
na cama, adormecidos, Linda muito branca e Popé quase negro, ao lado dela, um braço sob os seus
ombros, a outra mão bronzeada repousando sobre o seu peito e uma trança dos compridos cabelos do
homem atravessada na garganta de Linda, como uma serpente negra que a tentasse estrangular. A
cabeça de Popé pendia para o chão, onde estava uma chávena ao lado da cama. Linda ressonava.
Pareceu-lhe que o coração tinha desaparecido, deixando um buraco no seu lugar. Estava vazio. Sentia
uma sensação de vácuo, de frio, um pouco de náusea, vertigens. Encostou-se à parede para se aguentar
nas pernas. Traidor, devasso, sem remorsos ... Semelhantes aos tambores, semelhantes aos homens
cantando o encantamento do perigo, semelhantes às fórmulas mágicas, as palavras repetiam-se e
voltavam a repetir-se no seu espírito.
Depois da sensação de frio, sentiu subitamente um grande calor. Sentia o rosto em fogo com o afluxo
do sangue, o quarto girava e escurecia diante dos seus olhos. Rangeu os dentes: «Hei-de matá-lo, hei de
matá-lo, hei-de matá-lo», repetia sem cessar. E bruscamente surgiram-lhe outras palavras ainda:
Quando estiver ébrio e adormecido, ou encolerizado Ou nos prazeres incestuosos do leito ...
As fórmulas mágicas estavam a seu favor, a magia explicava e dava ordens. Saiu e voltou para o
primeiro compartimento. « Quando estiver ébrio ou adormecido ... adormecido ... » A faca de cortar a
carne estava no chão, perto da lareira. Apanhou-a e voltou para a porta na ponta dos pés. Atravessou o
quarto a correr e golpeou - Ah! O sangue! -, golpeou de novo, enquanto Popé se libertava com um
estremeção do amplexo do sono.

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [ parte 25]

CAPÍTULO OITAVO

Fora, no meio da poeira e por cima das imundícies - havia agora quatro cães -, Bernard e john
passeavam lentamente de um lado para o outro.
- É para mim tão difícil de compreender - dizia Bernard de tudo imaginar... Como se vivêssemos em
planetas diferentes em séculos diferentes. Uma mãe e toda esta porcaria, e além disso os deuses, a
velhice e a doença... - Abanou a cabeça. - quase inconcebível. Nunca chegarei a compreender, a não ser
que você mo explique.
- Explicar o quê?
- Isto. - Designou o pueblo. - Aquilo. - E desta vez era a casinha fora da aldeia. - Tudo. Toda a sua
vida.
- Mas que devo dizer-lhe?
- Desde o princípio. Desde a época mais longínqua que seja capaz de recordar.
Houve um longo silêncio.
Estava muito calor. Eles tinham comido muitas tortillas e trigo com açúcar. Linda disse-lhe: - Vem
deitar-te, bebé. Ambos se deitaram juntos na cama grande. - Canta. - E Linda cantou: "No meu
estreptococo alado, voai para Banbury-T" e, "Boa viagem, bebezinho, em breve serás decantado". A
sua voz foi-se tornando mais e mais fraca ...
Ouviu-se um grande estrépito, e ele acordou sobressaltado. Um homem estava de pé ao lado da cama,
enorme, pavoroso. Dizia'qualquer coisa a Linda, e Linda ria. Ela tinha puxado as cobertas até ao
queixo, mas o homem destapou-a. Os cabelos do homem pareciam duas cordas pretas e em torno do
braço trazia uma belíssima pulseira de prata onde se destacavam pedras azuis. john gostava muito da
pulseira, mas, apesar de tudo, tinha medo e escondeu o rosto contra o corpo de Linda. Linda pousoulhe
a mão no corpo e ele sentiu-se melhor e em segurança. Empregando a outra maneira de falar que
ele não compreendia tão perfeitamente, ela disse ao homem: - Sim, mas não na presença de john.

Aula de Campo - Sambaqui Espinheiros II

Usos e contra-usos do Sambaqui Espinheiros II




Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte final]

Outras noticias
DA minha viagem à República dos Estados Unidos da Bruzundanga,
tenho publicado, no A.B.C., algumas notas com as quais organizei um volu-
me que deve sair dentro em breve das mãos do editor Jacinto Ribeiro dos
Santos.
Estou fora da Bruzundanga há alguns anos; mas, de quando em
quando, recebo cartas de amigos que lá deixei, dando-me notícias de tão
interessante terra.
De algumas vale a pena dar conhecimento ao público que se interessa
pela vida desses povos exóticos e paradoxais.
Diz-me um amigo, em carta de meses atrás, que a Bruzundanga decla-
rou guerra ao império dos Ogres; mas não mandou tropas para combatê-los
ao lado dos outros países que já o faziam. Tratou unicamente de vender
uma grande partida de tâmaras dos seus virtuais aliados, com o que o inter-
mediário ganhou uma fabulosa comissão.

domingo, 27 de outubro de 2013

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 39]


Há, porém, o método empírico que é mais humano e compatível com
o grau de adiantamento a que chegou a nossa humanidade atualmente. Não
há morte, nem sangue, nem bravura, nem salvas.
Este método é muito usado na guarda nacional e poucas outras enti-
dades (vocabulário do football) militares. Vamos ver em que consiste.
Um tal método tem por princípio básico só admitir à promoção, oficiais
que nunca tenham visto soldados, fortalezas, quartéis, etc.
Por esse processo, estão fatalmente eliminados todos os oficiais que
hajam servido em guarnições longínquas.
O mais relevante conhecimento exigido, para as promoções de acordo
com esse processo empírico, é o de uma perfeita sabedoria nas marcas de
papel de ofícios, de grampos, colchetes e alfinetes, para papéis. Contam-se
como ultrameritórios os serviços pacíficos em linhas telegráficas, em leitura
de pluviômetros, em conversas com bugres filósofos e em construção de
estradas de ferro que não acabam mais.

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 38]

Aos poucos, porém, os parvenus viram bem que era preciso pôr um
pouco de beleza e de sonho nas suas existências de mascates broncos e
ferozes saqueadores legais. Deram em pagar sonetos que festejassem o
nascimento dos filhos e elegias que lhes dessem lenitivo por ocasião da
morte dos pais. Pagavam bem e pontualmente, como hoje se pagam as
missas de sétimo dia aos sacerdotes que oficiam nelas, ou em outras ceri-
mônias menos tristes.
Alguns, porém, quiseram mais ainda e, tendo notícias que os nobres
feudais, de espada e cavalo de batalha encouraçado e intrépido, tinham
os seus vates e trovadores, nos seus castelos e manoirs, pensaram em tê-los
também, pagando-os a bom preço, a fim de que contribuíssem com as suas
"palavras douradas" para o brilho de suas festas.
Um desses milionários, caprichoso e voluntarioso, quis ir mais longe
ainda. Tendo construído nos fundos de sua chácara, situada em um pito-
resco arrabalde da capital da República da Bruzundanga, um tanque imenso,
para dar banho aos cavalos de raça das suas opulentas cavalariças, teimou
que havia de inaugurá-los soberbamente, com notícias nos jornais, bênçãos
religiosas e um discurso feito pelo maior literato de Bruzundanga, ou tido
como tal, enfim, pelo mais famoso.

sábado, 26 de outubro de 2013

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 37[


Coisas maravilhosas de um tradutor burocrático:
1.o) arbustos de serra (arbrisseaux de serre)
2.o) bilhetes de bilhar (billes de billard)
3.o) Tecidos de... cânhamo ou de ramia (ramie)
4.o) fetos de serra (fougères de serre)
5.o) berloques, colorados... (breloques, coloriées),
Todas estas e muitas outras lindezas semelhantes vieram publicadas no
D.O. da Bruzundanga, em 23 de março de 1917: e o ato era assinado
pelo grande Ministro -- Kallokeras.
"A seleção nas repartições é feita inversamente de forma que os em-
pregados mais graduados são os mais néscios e inscientes. Houve quem
propusesse para corrigir tal defeito que se mudasse a hierarquia burocrá-
tica: o cargo de diretor passava a ser o primeiro da escala e o de prati-
cante, o último."

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 36]


Feito amanuense, aprendeu logo a copiar minutas e, em menos de seis
anos, Sune, o tal da carta, acabou eleito, por unanimidade, membro da
Academia de Letras da Bruzundanga.
Ficou sendo o que aqui se chama -- um "expoente".

XXII
Notas soltas

UM anúncio de livraria, na Bruzundanga:
"Acaba de aparecer o extraordinário romance -- Meu caro senhor...,
de Dona Adhel Karatá (pseudônimo de Hiralhema Sokothara Lomes,
filha do grande poeta e escritor Sokothara Lomes, cujas assombrosas glórias
literárias ela continua com muito brilho, e irmã do fino estilista e elegante
parlamentar Carol Sokothara Lomes). À venda, etc., etc."
***

Os Bruzundangas - Lima Barreto [pate 35]


Além daquelas medidas que citei em um dos capítulos passados, logo
no início do seu ministério, tomou o visconde estas primordiais; usar pape!
de linho nos ofícios, estabelecer uma cozinha na sua secretaria e baixar
uma portaria, determinando que os seus funcionários engraxassem as botas
todos os dias. Na cozinha, porém, é que estava o principal das suas refor-
mas, pois era o seu fraco a mesa farta, atulhada.
Em seguida, convenceu o Mandachuva que o país devia ser conhecido
na Europa por meio de uma imensa comissão de propaganda e de anúncios
nos jornais, cartazes nas ruas, berreiros de camelots, letreiros luminosos, nas
esquinas e em outros lugares públicos.
A sua vontade foi feita; e a curiosa nação, em Paris foi muitas vezes
apregoada nos boulevards como o último específico de farmácia ou como
uma marca de automóveis. Contam-se até engraçadas anedotas.
Nos anúncios luminosos, então, a sua imaginação foi fértil. Houve
um que ficou célebre e assim rezava: "Bruzundanga, País rico -- Café,
cacau e borracha. Não há pretos".

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 34]

Em lei, o caminho estava estabelecido: abria-se concurso e nomeava-se
um dos habilitados; mas Pancome nada tinha que ver com as leis, embora
fosse ministro e, como tal, encarregado de aplicá-las bem fielmente e
respeitá-las cegamente.
A sua vaidade e certas quizílias faziam-no desobedecê-las a todo o
instante. Ninguém lhe tomava contas por isso e ele fazia do seu minis-
tério coisa própria e sua.
Nomeava, demitia, gastava as verbas como entendia, espalhando di-
nheiro por todos os toma-larguras que lhe caíam em graça, ou lhe escreviam
panegíricos hiperbólicos.
Uma das suas quizílias era com os feios e, sobretudo, com os bruzun-
danguenses de origem javanesa -- cousa que equivale aqui aos nossos
mulatos.
Constituíam o seu pesadelo, o seu desgosto e não julgava os indivíduos
dessas duas espécies apresentáveis aos estrangeiros, constituindo eles a ver-
gonha da Bruzundanga, no seu secreto entender.

Os Bruzundangas - Lima Barreto parte 33

Arrebatadamente entra pelo gabinete ministerial adentro e, dando
com o secretário, pois o Ministro não estava, desanda no dedicado serven-
tuário uma feroz descompostura em que o chama de lacaio, de capacho,
de toma-larguras, de lavador de tinteiros, etc., etc.
Entretanto, o secretário não merecia tão feroz objurgatória, pois, em
geral, esses abnegados serventuários da Bruzundanga são pessoas ternas,
meigas, de bom coração, especialmente com os filhos dos Ministros.
Em dias de festas, das festas familiares dos Ministros, é de ver como
tratam os pimpolhos ministeriais; é de ver como suportam resignadamente
o peso de um nas costas, o de um outro nos joelhos, além do incômodo
de um terceiro que lhe passou um barbante na boca e simula guiá-lo
como cavalo de tílburi.
Não vão para a copa; mas -- coitados! -- aturam coisas muito piores.
Disse, no começo desta "nota", que o secretário de Ministro era
indispensável ao complexo funcionamento do aparelho governamental da
Bruzundanga.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Nas árvores de minha infância, brisa leve... - Rosilda da Silva


Hoje calor severo, amanhã climatizador e hipotensão

Durante minha infância vivi em um bairro distante do centro, aqui em Joinville mesmo, o Paranaguamirim, nome de origem Tupi-guarani e que significa enseada pequena.  Havia poucas casas na época e nossa rua não tinha pavimentação, aliás, até valas na frente de casa havia. Quando chovia muito era possível depois da estiagem brincar com barquinhos de papel e os avistar atravessando de um lado para o outro no único tubo que havia em frente ao terreno e que dava acesso à nossa moradia.
Hoje ainda moro no mesmo bairro, mas o número de casas aumentou em grande escala. Há mais de 22.000 habitantes; as principais ruas são pavimentadas e poucas são valas em relação as que antes existiam. Acreditávamos que com a vinda do asfalto estaríamos finalmente livres da lama que nos fazia passar por muitas situações constrangedoras, entretanto, não pensávamos que isso poderia ser um problema. Agora quando chove torrencialmente o que se vê é o risco de alagamentos e enchentes em pontos estratégicos. Não se avistam mais barquinhos de papel boiando nas águas depois das chuvas, mas é possível observar um desfile de carros encalhados, pessoas desesperadas sem saber o que socorrer primeiro nessas situações e um verdadeiro festival colorido de sombrinhas disputando um lugar nos poucos abrigos de ônibus existentes.  

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 32]

Durará dois anos este curso e conferirá, ao aluno que o terminar, o
grau de doutor em artigos de armarinho e boas maneiras.
Semanalmente, haverá duas aulas gerais, cuja frequência será obriga-
tória aos alunos de todas as aulas; a de dança e a de coisas de carnaval.
Eis aí como, em linhas gerais, iria ser, conforme me disseram, a
Academia Comercial da Bruzundanga.

XVIII
A religião

SEGUNDO afirmam os compêndios de geografia do país, tanto os
nacionais como os estrangeiros, a religião dominante é a católica apostólica
romana; entretanto, é de admirar que, sendo assim, a sua população,
atualmente já considerável, não seja capaz de fornecer os sacerdotes, quer
regulares, quer seculares, exigidos pelas necessidades do seu culto.
Há muitas igrejas e muitos conventos de frades e monjas que, em
geral, são estrangeiros.

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 31]

Foi então que para sanar tão lastimável estado de cousas, para nacio-
nalizar o comércio, alguns homens de boa vontade tomaram a iniciativa
de fundar, em Bosomsy, um alto estabelecimento de instrução comercial,
nos moldes alemães e americanos, isto é, inteiramente prático. Vou em
rápidas palavras dizer-lhes como eles o projetaram e para tal, nada mais
farei do que transcrever para aqui as partes essenciais do programa que
estavam distribuindo quando saí da grande República e as conversas que
com eles tive.
Era intuito dos fundadores da Academia Comercial banir do seu ensino
todo o pedantismo, todo o luxo teórico; fazê-lo prático, moderno, à yankee.
De tal modo o queriam assim que ao fim de um curso de pequena dura-
ção, o aluno pudesse, sem dificuldades e hesitações, colocar-se à testa de
uma loja e geri-la com o desembaraço e a segurança de velho negociante
com vinte anos de prática.
Além de negociantes propriamente, a Academia visava sobretudo for-
mar magníficos caixeiros, magnéticos, com virtudes de ímã, capazes de
solicitar, de empolgar, de atrair a freguesia.

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 30]

Uma vergonha!
Acontecia em certas ocasiões que um grupo gritava -- Viva o doutor
Clarindo! -- o outro exclamava: -- Viva o doutor Carlindo -- e um
terceiro expectorava -- Viva o doutor Arlindo! -- quando o verdadeiro
nome do doutor era -- Gracindo!
Para obviar tais inconvenientes, houve alguém que teve a ideia de
"canalizar, de disciplinar" o entusiasmo do povo bruzundanguense, entusias-
mo tão necessário às manifestações que lá há constantemente, e tão indis-
pensáveis são ao fabrico de grandes homens que dirijam os destinos da
grande e formosa República dos Estados Unidos da Bruzundanga.
Esse alguém, esse homem de gênio, cujo nome infelizmente me escapa
agora, delineou -- a "Guarda do Entusiasmo".
Os fins a que a organização de semelhante corpo manifestante devia
obedecer, foram expostos pelo seu criador, mais ou menos, nas seguintes
palavras que, se não são transcritas do seu manifesto, podem ser tomadas
como verdadeiras, pois me gabo de ter muito boa memória.

Os Bruzundangas - Lima Barreto {parte 29]

Vestiu-se o melhor que pôde, dispôs-se a suportar o suplício das botas,
pôs ao colete o relógio, a corrente e o medalhão de ouro com a enorme
estrela de brilhante que parece ser o distintivo dos pequenos e grandes
negociantes de todas as terras, e encaminhou-se para a estação da estrada
de ferro. Ei-lo no centro da cidade.
Adquiriu a entrada, isto é, o cartão, nas mãos do contínuo do con-
sultório, despedindo-se dos seus cinqüenta mil-réis com a dor de pai que
leva um filho ao cemitério. Ainda se o doutor fosse seu freguês... Mas
qual! Aqueles não voltariam mais...
Sentou-se entre 'cavalheiros bem vestidos e damas perfumadas. Evitou
encarar os cavalheiros e teve medo das damas... Sentia bem o seu opró-
brio, não de ser taverneiro, mas de só possuir de economias duas miseráveis
dezenas de contos... Se tivesse algumas centenas -- então, sim, ele! -- ele
poderia olhar aquela gente com toda a segurança da fortuna, de dinheiro,
que havia de alcançar certamente, dentro de anos, o mais breve possível.
Um a um, iam eles entrando para o interior do consultório; e pouco
se demoravam. Suza, começou a ficar desconfiado... Diabo! Assim tão
depressa?

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 28]

Porque o maravilhoso clínico não gostava das fórmulas e medica-
mentos vulgares; ele era original na botica que empregava.
O seu consultório ficava em uma rua central, ocupando todo um
primeiro andar. As ante-salas eram mobiliadas com gosto e tinham mesmo
pela parede quadros e mapas de cousas da arte de curar.
Havia mesmo, no corredor, algumas gravuras de combate ao alcoolismo
e era de admirar que estivessem no consultório de um médico, cuja glória
o obrigava a ser conviva de banquetes diários, bem e fartamente regados.
Para se ter a felicidade de sofrer um exame de minutos do milagroso
clínico, era preciso que se adquirisse a entrada, isto é, o cartão, com ante-
cedência, às vezes, de dias. O preço era alto, para evitar que os viciosos
do grande clínico não atrapalhassem os que verdadeiramente necessitavam
das luzes do célebre clínico...
Custava a consulta cera de cinqüenta mil-réis, na nossa moeda; mas
apesar de tão alto preço, o escritório da celebridade médica era objeto de
uma verdadeira romaria e toda cidade o tinha como uma espécie de Apa-
recida médica.

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 27]

Na pensão um meu amigo pediu-me que votasse no Kasthriotoh. E
um moço muito pobre, está quase na miséria, disse-me o amigo, cheio de
família; precisa muito do subsídio.
Tive dó e, quando deixei o almoço, tinha o arraigado propósito de
votar no indigente Kasthriotoh. Dirigi-me, no dia próprio, para a secção
eleitoral, e esperei. Chamaram-me, afinal.
Quase a tremer, no alevantado fito de influir nos destinos da Pátria
consegui atravessar por entre duas filas de homens de aspecto feroz, que
me olhavam desdenhosamente.
Sentei-me, mostrei o meu título, assinei um livro, depus a cédula na
urna e fiquei um momento cismando diante da esbelteza de um longo
arco abatido que, de uma única enjambée e com uma flecha relativamente
diminuta, vencia, com suave elegância, toda a largura do átrio do palácio
vice-real, onde funcionava a secção eleitoral.
Creio que me demorei indecentemente nessa admiração, porque vi as
minhas cismas interrompidas pelo grito enérgico do coronel mesário-pre-
sidente:

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Vem aí a Feira do Livro... Programe-se



Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 26]


Cada cabeça, cada sentença; e, para obviar os inconvenientes de seme-
lhante fato, os mesários da Bruzundanga lavravam as atas conforme enten-
diam e davam votações aos candidatos, conforme queriam.
Na capital da Bruzundanga, Bosomsy, onde assisti diversas eleições,
o espetáculo delas é o mais ineditamente pitoresco que se pode imaginar.
As ruas ficam quase desertas, perdem o seu trânsito habitual de mu-
heres e homens atarefados; mas para compensar tal desfalque passam
constantemente por elas, carros, automóveis, pejados de passageiros hetero-
gêneos. O doutor-candidato vai neles com os mais cruéis assassinos da
cidade, quando ele mesmo não é um assassino; o grave chefe de secção,
interessado na eleição de F., que prometeu fazê-lo diretor; o grave chefe,
o homem severo com os vadios de sua burocracia, não trepida em andar
de cabeça descoberta, com dois ou três calaceiros conhecidíssimos.
A fisionomia aterrada e curiosa da cidade dá a entrever que se está à
espera de uma verdadeira batalha; e a julgar-se pelas fisionomias que se
amontoam nas secções, nos carros, nos cafés, e botequins, parece que as
prisões foram abertas e todos os seus hóspedes soltos, naquele dia. 

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 25]

É assim o mecenato da Bruzundanga. A falta de generosidade e a sua
inquietude pelo dia de amanhã ferem logo a quem examina a sociedade
daquele país, mesmo perfunctoriamente.
Basta ler os testamentos dos seus ricos e compará-los com os que
fazem os humildes iberos que lá enriqueceram em misteres humildes, para
sentir a inferioridade moral da sociedade da Bruzundanga.
Nestes últimos, há mesmo um grande pensamento da hora da morte,
quando fazem legados a amigos, a parentes afastados, a criados, a institui-
ções de caridade; mais, nos daqueles, só se topa com o mais atroz egoísmo.
Lembro-me de um ricaço de lá que, ao morrer, fez avultados legados aos
netos, filhos de sua filha, com a condição de que deviam usar o nome dele
-- cousa que, como se sabe, se não é contrária às leis, ofende os costumes.
O sobrenome tira-se do pai, lá como aqui.
Por falar em cousas de morte, convém recordar que os cemitérios dessa
gente, ou por outra, os túmulos das pessoas da alta roda da Bruzundanga
são outra manifestação da sua pobreza mental.

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 24]


XII
A sociedade

É deveras difícil dizer qualquer cousa sobre a sociedade da Bruzun-
danga. É difícil porque lá não há verdadeiramente sociedade estável. Em
geral, a gente da terra que forma a sociedade, só figura e aparece nos luga-
res do tom, durante muito pouco tempo. Os nomes mudam de trinta em
trinta anos, no máximo. Não há, portanto, na sociedade do momento tra-
dição, cultura acumulada e gosto cultivado em um ambiente propício. São
todos arrivistas e viveram a melhor parte da vida tiranizados pela paixão de
ganhar dinheiro, seja como for. Os melhores e os mais respeitáveis são
aqueles que enriqueceram pelo comércio ou pela indústria, honestamente,
se é possível admitir que se enriqueça honestamente.
Esses, porém, fatigados, embotados, não formam bem a sociedade, em-
bora as suas filhas e mulheres façam parte dela.
Os que formam direitamente a grande sociedade, são os médicos ricos,
os advogados afreguesados, os tabeliães, os políticos, os altos funcionários
e os acumuladores de empregos públicos.

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 23]


É semelhante senhora que lá, naquelas plagas, comparam à Jeanne
d'Arc. Admirável!
Por aí, podem os senhores ver de que estofo são os heróis da
Bruzundanga; mas há outros.
Como sabem, a Bruzundanga foi, durante um século, Império ou Mo-
narquia. Há seis ou sete lustros os oficiais do seu exército começaram a
ficar descontentes e juntaram-se a outros descontentes civis, que tinham
achado para resumir as suas vagas aspirações a palavra República.
 Começaram a agitar-se e, em breve, tinham a adesão dos senhores de escravos,
cuja libertação os fizera desgostosos com o trono da Bruzundanga.
Os amigos do Império, vendo que as cousas perigavam, trataram de
enfrentar a corrente com decisão e chamaram, para condestável da
Bruzundanga, um velho general que vivia retirado nas suas propriedades
agrícolas. Era de crer que semelhante condestável pudesse ser vencido, mas que
confabulasse com os inimigos que vinha combater, não era possível admitir!

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 24]

- Isto parece a torre de Charing-T - comentou Lenina. Mas não teve oportunidade de gozar muito
tempo de tão tranquilizadora descoberta. Um ruído de passos amortecidos fê-los virarem-se. Nus do
pescoço ao umbigo, o corpo bronzeado listrado de riscas brancas («como campos de ténis de cimento»,
explicaria mais tarde Lenina), o rosto tornado inumano pela pintura escarlate, negra e ocre, dois índios
vinham correndo ao longo do carreiro. Os seus cabelos negros estavam entrançados com tiras de pele
de raposa e de flanela vermelha. Um manto de penas de peru flutuava-lhes nos ombros, enormes
diademas de plumas lançavam em volta da cabeça reflexos de tons brilhantes. A cada passo que davam,
elevava-se o guisalhar das suas pulseiras de prata e dos pesados colares de ossos e de turquesas.
Aproximavam-se calados, correndo silenciosamente com os seus sapatos de pele de gamo. Um deles
trazia uma espécie de espanador; o outro, em cada mão, o que parecia ser, à distância, três ou quatro
pedaços de corda grossa. Uma das cordas torcia-se inquietador amente, e Lenina viu de súbito que
eram serpentes.
Os homens aproximaram-se, cada vez mais perto. Os seus olhos sombrios encaram-na, mas sem darem
qualquer sinal de a terem visto ou de terem consciência da sua existência. A serpente, que antes se
retorcia, pendia agora, molemente, junto às outras. Os homens continuaram o seu caminho.
- Isto não me agrada - disse Lenina. - Não me agrada mesmo nada.
O que a esperava à entrada do pueblo ainda lhe agradou menos, quando o guia os abandonou por
momentos para ir receber instruções. Primeiro a sujidade, montes de imundícies, poeira, cães, moscas.
O rosto de Lenina franziu-se numa careta de nojo. Levou o lenço ao nariz.
- Mas como podem eles viver assim? - explodiu, numa voz de incredulidade indignada. Não, não era
possível.

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 23]

- Tome um grama de soma - aconselhou Lenina. Recusou, preferindo a sua cólera. E, enfim, Ford seja
louvado, obteve a ligação. Era mesmo Helmholtz, a quem explicou o que tinha acontecido, e que lhe
prometeu ir imediatamente fechar a torneira, sim, imediatamente, mas que aproveitou a ocasião para o
informar do que o D. I. C. tinha dito em público na véspera à noite ...
- O quê? Anda à procura de alguém para me substituir? A voz de Bernard traduzia um sofrimento atroz.
- Então sempre é verdade? E ele precisou que era a Islândia? Você diz que sim? Ford! A Islândia! ...
Desligou o aparelho e virou-se de novo para Lenina. O seu rosto empalidecera, tinha uma expressão
totalmente abatida.
- Que se passa? - perguntou ela.
- Que se passa? - Deixou-se cair pesadamente numa cadeira. - Passa-se que vão despachar-me para a
Islândia.
Frequentemente, no passado, ele tinha perguntado a si próprio o que sentiria se fosse submetido (sem
soma e sem poder contar com outra coisa a não ser a sua própria força interior) a alguma grande prova,
a alguma dor, a alguma perseguição; tinha mesmo desejado ardentemente ser atingido. Apenas há oito
dias vira-se resistindo corajosamente, aceitando estoicamente, sem uma palavra, o sofrimento. As
ameaças do Diretor tinham-no exaltado verdadeiramente, tinham-lhe dado a sensação de ser maior
que o normal. Mas isso era, via agora, porque não tomara essas ameaças a sério; não acreditara que,
quando chegasse a altura, o D. I. C. fizesse alguma coisa. Agora, ao ver que as ameaças iam realmente
ser postas em execução, Bernard ficou aterrado. Desse imaginado estoicismo, dessa coragem teórica,
nada restava.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 22]

Tomando posse, o famoso e prático usineiro imediatamente teve uma
grande admiração.
-- Onde está aqui agricultura?... Estes papéis... Isto não é prático!... Quero cousas práticas!... Canaviais... Engenhos... Qual! Isto não é prático! Vou fazer uma reforma!
Mandou chamar Ormesson para ajudá-lo e, nesse ínterim, andou às cristas com os seus subalternos. Vinha o chefe da Contabilidade e ele gritava:
-- Qual verba 29, letra A! Isto é uma trapalhada! Quero coisas práticas! Vou chamar o Félix, o meu guarda-livros, lá do Cambambu, a minha usina. Conhece?
O inspetor do serviço de veterinária vinha pedir-lhe autorização para instalar um laboratório e Caiana berrava:
-- Qual laboratório! Qual nada! Tudo isto é pomada! Vou mandar chamar o Nicodemo. Conhece? Pois trata toda a espécie de moléstias de animais com sangria ou óleo de andaiaçu. Quero cousas práticas! Práticas, está ouvindo?
Tendo chegado o francês e o guarda-livros, ele recomendou ao  primeiro:
-- Ormesson, vê como havemos de fazer isto aqui ser mesmo de
agricultura. Quero cousa prática! Hein? Vê lá, se vais beber! Hein? 

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 21]


Todos eles são políticos, senão de destaque, ao menos com influência
nos lugares em que têm as suas fazendas agrícolas; e, apoiados na política,
fazem o que querem, são senhores de baraço e cutelo, eles ou os seus
prepostos.
O pária agrícola (chamam lá colono ou caboclo), quando se estabelece nas suas propriedades, tem todas as promessas e todas as garantias verbais. Constrói o seu rancho, que é uma cabana de taipa coberta com  o que nós chamamos sapê, e começa a trabalhar para o barão, desta ou
daquela maneira. Não me alongo mais sobre a vida deles, porque pouco vivi na roça da Bruzundanga; mas posso asseverar que o trabalhador agrícola daquele país -- esteja o café em alta, esteja em baixa, suba o açúcar, desça o açúcar -- há trinta anos ganha o mesmo salário, isto é, dez tônios
por dia, a seco, o que quer dizer, na nossa moeda, mil quinhentos e dois mil-réis, sem alimentação.
Todos os salários têm subido na Bruzundanga, menos os dos trabalhadores agrícolas. A parte povoada e cultivada do país tem já uma razoável população e talvez suficiente para as suas necessidades, mas, à vista do pouco lucro que os trabalhadores agrícolas tiram do seu suor, em breve
deixam-se cair em marasmo, em desânimo, ou vêm a morrer de miséria nas cidades, onde se sentem mais garantidos contra o arbítrio dos fazendeiros e seus prepostos.

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 20]

O cargo dá-lhe certos incômodos, mas muitas vantagens: não paga
selo nas cartas, não paga bonde, trem, nem teatros, onde continua a quase
não ir. O que o aborrece, sobretudo, são as audiências públicas -- uma
importunação para esse parente de São Luiz. Mais o amolar que lhe dão
fadiga. Ao sair de uma delas, diz à mulher:
-- Que povo aborrecido!
-- Mas que tem você com o povo? -- pergunta Mme. Mandachuva, a
Egéria conjugal.
Para distrair-se, o esclarecido Mandachuva compra um bom gramofone e instala no palácio um cinema.
É conveniente lembrar que, nesse mesmo palácio, ao tempo em que  a Bruzundanga era Império, executores famosos no mundo inteiro tinham tocado obras-primas musicais, no violino e no piano. Houve progresso...
Eis aí um Mandachuva perfeito.

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 19]

Durante este longo tempo em que ele passa como deputado, senador,
isto e aquilo, o esperançoso Mandachuva é absorvido pelas intrigas políticas, pelo esforço de ajeitar os correligionários, pelo trabalho de amaciar os influentes e os preponderantes, na política geral e regional. A sua atividade espiritual limita-se a isto.
Os preponderantes e influentes têm todo o interesse em não fazer subir os inteligentes, os ilustrados, os que entendem de qualquer cousa; e tratam logo de colocar em destaque um medíocre razoável que tenha mais ambição de subsídios do que mesmo a vaidade do poder.
Além disso, eles têm que atender aos capatazes políticos das localidades das províncias; e, em geral, estes últimos indicam, para os primeiros postos políticos, os seus filhos, os seus sobrinhos e de preferência a estes: os seus genros.
A ternura do pai quer sempre dar essa satisfação à vaidade das filhas.
O futuro chefe do governo da Bruzundanga começa a sua carreira política pela mão do sogro; e, relacionando-se com os bonzos de sua província, se é esperto e apoucado de inteligência e saber, faz-se ainda mais; na maioria dos casos, porém, não é preciso tanto. Os caidos ficam logo
contentes com ele. Mandam-no para a Câmara Geral; e, durante a primeira legislatura, encarregam-no de comprar ceroulas, pares de meias, espingardas de dois canos, óculos de grau tanto, de ir às repartições ver tal requerimento, de empenhar-se pelos exames dos nhonhôs, etc... 

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 18]

A Constituição da Bruzundanga era sábia no que tocava às condições
para elegibilidade do Mandachuva, isto é, o Presidente.
Estabelecia que devia unicamente saber ler e escrever; que nunca tivesse
mostrado ou procurado mostrar que tinha alguma inteligência; que não
tivesse vontade própria; que fosse, enfim, de uma mediocridade total.
Nessa parte a Constituição foi sempre obedecida.
A República dura, na Bruzundanga, há cerca de trinta anos. Têm
passado pela curul presidencial nada menos do que seis Mandachuvas, e
não houve, talvez, um que infringisse tão sábias disposições.
A Carta da Bruzundanga, que começou imitando a do país dos gigantes, foi inteiramente obedecida nessa passagem, e de um modo religioso.
No que toca ao resto, porém, ela tem sofrido várias mutilações, desfigurações e interpretações de modo a não me permitir continuar a dar mais apanhados dela, a menos que quisesse escrever um livro de seiscentas páginas.
 

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 17]

A isto, eles batizam, por conta própria, de aristocracia da arte, arte superior, arte das delicadezas impalpáveis.
Publicam esses catálogos de ourivesaria, quando não são de modistas e alfaiates, em edições luxuosas; e, imediatamente, apresentam-se candidatos à Academia de Letras da Bruzundanga.
Houve tempo em que ela os aceitava sem detença; mas, ultimamente devido à sua senilidade precoce, desprezou-os e só vai aceitando os taumaturgos da cidade.
Não há médico milagreiro e afreguesado que não entre para ela e pretira os diplomatas.
Nem sempre foi assim a diplomacia da Bruzundanga. Mesmo depois de lá se ter proclamado a República, os seus diplomatas não tinham o recheio de ridículo que atualmente têm.
Eram simples homens como quaisquer, sem pretensões do que não  eram, sem fumaças de aristocracia, nada casquilhos, nem arrogantes.
Apareceu, porém, um embaixador gordo e autoritário, megalômano e inteligente, o Visconde de Pancome, que fizeram ministro dos Estrangeiros,e ele transformou tudo.
Empossado no ministério, a primeira cousa que fez foi acabar com as leis e regulamentos que governavam o seu departamento. A lei era ele.

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 22]

Foi uma heroica descrição a que ele fez, nessa noite, da sua entrevista com o D. I. C. - E então -
terminou ele - mandei-o muito simplesmente para ... o Passado sem Fundo. E saí de cabeça erguida. E
pronto.
Dirigiu a Helmholtz Watson um olhar de quem espera qualquer resposta, simpatia, encorajamento,
admiração, como lhe era devido. Mas não teve nenhuma resposta. Helmholtz ficou sentado e
silencioso, os olhos no chão.
Gostava muito de Bernard e estava-lhe reconhecido por ser o único homem do seu conhecimento com
quem podia conversar sobre assuntos que lhe pareciam importantes. No entanto, havia em Bernard
coisas detestáveis. Essa gabarolice, por exemplo, alternada com as explosões de uma piedade por si
próprio que eram uma verdadeira falta de dignidade, assim como esse deplorável costume que tinha de
ser ousado, depois do sarilho passado, e cheio, a distância, da mais extraordinária presença de espírito.
Detestava todas essas coisas, precisamente porque gostava de Bernard. Os segundos passavam.
Helmholtz continuou de olhos fixos no chão. E subitamente Bernard corou e afastou o olhar.

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 21]

- Não deixes para amanhã o prazer que puderes gozar hoje - disse ela gravemente.
- Duzentas repetições, duas vezes por semana, dos catorze aos dezesseis anos e meio - disse Bernard
como único comentário. E continuou a divagar, a falar das suas ideias insensatas e perniciosas. - Quero
saber o que é a paixão - ouviu-o ela dizer. - Quero sentir qualquer coisa com violência.
- Quando o indivíduo sente, a comunidade ressente-se, declarou Lenina.
- E então! Por que não há de ela ressentir-se?
- Bernard! Mas Bernard não se desconcertou absolutamente nada.
- Adultos intelectualmente durante as horas de trabalho, continuou. - Bebês no que diz respeito ao
sentimento e ao desejo.
- Nosso Ford gostava de bebês. Sem reparar na interrupção, Bernard prosseguiu:
- A ideia veio-me subitamente, há dias: talvez fosse possível ser-se sempre adulto.
- Não percebo. Lenina falara num tom firme.
- já sei. E eis a razão porque nos fomos deitar juntos ontem, como garotos, em vez de sermos adultos e
esperarmos.
- Mas foi divertido - insistiu Lenina. - Não foi?
- Oh! O mais divertido possível - respondeu, mas com voz desolada, com uma expressão tão
profundamente miserável que Lenina sentiu evaporar-se subitamente todo o seu triunfo.

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 20]

Completamente inofensivo, talvez. Mas igualmente muito inquietante. Em primeiro lugar, essa mania
de fazer as coisas na intimidade. O que equivalia, na prática, a nada fazer. Que se pode fazer na
intimidade? (à parte, bem entendido, ir para a cama; mas não se pode fazer isso continuamente.) Sim,
que se pode fazer? Muito poucas coisas. Na primeira tarde que saíram juntos estava um tempo
excepcional. Lenina tinha proposto irem nadar ao Torquay Country Club e depois irem jantar a Oxford
Union. Mas Bernard pensava que haveria, com certeza, gente a mais. Bem, então se fizessem um jogo
de golf eletromagnético em Saint Andrews? Mas ele tinha recusado de novo.
Bernard considerava o golf electromagnético uma perda de tempo.
- Mas então, para que serve o tempo? - perguntou Lenina admirada.
Aparentemente, para dar passeios na Região dos Lagos, pois era isso que ele propunha. Aterrar no
cume do Skiddaw e fazer uma caminhada de duas horas entre as urzes.
- Sozinho consigo, Lenina.
- Mas, Bernard, nós ficaremos sós toda a noite. Bernard corou e desviou o olhar.
- Eu queria dizer ... sós para conversar - murmurou.
- Para conversar? Mas a respeito de quê? - Andar e conversar parecia-lhe uma estranha maneira de
passar uma tarde.

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 19]

E a expectativa, que, por momentos, se atenuara, de novo ficou tensa, semelhante a uma corda que se
estica, mais, cada vez mais, quase ao ponto de rebentar. Os pés do Grande Ser. Ah, eles ouviam-nos,
ouviam-nos descendo docemente os degraus, aproximando-se cada vez mais a medida que desciam a
escada invisível. Os pés do Grande Ser. E, subitamente, o limite de ruptura foi atingido. Com os olhos
arregalados e os lábios entreabertos, Morgana Rothschild levantou-se de um salto.
- Estou a ouvi-lo, estou a ouvi-lo! - exclamou.
- Ele chega! - gritou Sarojini Engels.
- Sim, ele chega, estou a ouvi-lo! - Fifi Bradlaugh e Tom Kawaguchi ergueram-se simultaneamente.
- Oh! Oh! Oh! - disse Joana, numa inarticulada exclamação.
- Ele chega! - uivou jim Bokanovsky.
O Presidente inclinou-se para a frente e, com um leve movimento da mão, desencadeou um delírio de
címbalos e de metais, um acesso febril de marteladas em tantãs.
- Oh, ele chega! - vociferou Clara Deterding. - Ai! - gritou, como se lhe tivessem cortado a garganta.
Sentindo que era a altura de fazer qualquer coisa, Bernard pôs-se de pé num salto e, Como os outros,
berrou:
- Estou a ouvi-lo! Ele chega! Mas não era verdade. Não ouvia nada, e para ele ninguém tinha chegado.
Ninguém, apesar da música, apesar da crescente superexcitação. Mas agitou os braços, gritou como os
outros. E quando os outros se puseram a bambolear, a bater com os pés e a caminhar arrastando-os, ele,
como os outros, também se bamboleou e arrastou os pés.

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 18]

E no entanto, mesmo encerrada numa proveta e apesar dessa segunda
dose de soma, Lenina não se esqueceu de tomar todas as precauções anticoncepcionais prescritas pelos
regulamentos. Anos de hipnopedia intensiva e, dos doze aos dezessete anos, os exercícios maltusianos
três vezes por semana, tinham tornado a prática dessas precauções quase tão automática como o
pestanejar.
- Oh, isto faz-me lembrar uma coisa... - disse ela, saindo da casa de banho. - Fanny Crowne gostava de
saber onde foi que comprou este delicioso cinto de pseudomarroquim verde que me ofereceu.
Às quintas-feiras, de quinze em quinze dias, era o dia das Cerimônias de Solidariedade de Bernard.
Após um rápido jantar no Aphroditaeum (de que Helmholtz tinha sido recentemente eleito sócio, ao
abrigo do artigo II do regulamento), despediu-se do seu amigo e, chamando um táxi no terraço,
ordenou ao condutor que se dirigisse para o Palácio de Cantos em Comum de Fordson. O aparelho
elevou-se a perto de duzentos metros e dirigiu-se para leste. Enquanto efetuava a viragem, apareceu
perante os olhos de Bernard, gigantescamente belo, o palácio. Iluminados pelos projetores, os seus
trezentos e vinte metros de pseudomármore branco de Carrara brilhavam numa alva incandescência por
cima de Ludgate Hill; em cada um dos quatro ângulos do seu terraço para helicópteros um T imenso
luzia, vermelho, contra o céu noturno. Pelos alto-falantes de vinte e quatro enormes trombetas de ouro
vibrava uma solene música sintética.
- Mau, estou atrasado - murmurou Bernard quando avistou o Big Henry(*), o relógio do palácio. E,
com efeito, quando pagava o táxi, Big Henry deu a hora exacta. «Ford», berrou uma formidável voz de
baixo, saindo de todas as trombetas de ouro: «Ford, Ford, Ford, ... » Nove vezes. Bernard correu para o
ascensor.

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 17]

- Recuperação do fósforo - explicou Henry em estilo telegráfico. - Durante o seu trajeto até ao fim da
chaminé, os gases sofrem quatro tratamentos distintos. Antigamente o P2 Os saía completamente da
circulação cada vez que se efetuava uma cremação. Atualmente, recupera-se mais de noventa por
cento. Mais de um quilo e meio por corpo adulto. O que representa, só para a Inglaterra, qualquer coisa
como quatrocentas toneladas de fósforo por ano. - Henry falava cheio de um orgulho feliz, regozijando-se
de todo o coração por tal resultado, como se este fosse devido a ele. - É uma bela coisa pensar que
podemos continuar a ser socialmente úteis mesmo depois de mortos. Para fazer crescer as plantas.
Lenina, entretanto, desviara os olhos e observava verticalmente, lá em baixo, a estação do monocarril.
- É uma bela coisa - concordou. - Mas é estranho que os Alfas e os Betas não façam crescer mais
plantas que esses ignóbeis pequenos Gamas, esses Deltas e esses Epsilões que estão lá em baixo.
- Todos os homens são físico-quimicamente iguais - disse, Henry sentenciosamente. - Além disso, os
próprios Epsilões desempenham funções indispensáveis.
- Mesmo um Epsilão... - Lenina recordou-se subitamente do momento em que, garotinha de escola,
tinha acordado no meio da noite e compreendido pela primeira vez o que era o murmúrio que enchia
todas as suas horas de sono. Reviu o luar, a fila de pequenas camas brancas; ouviu de novo a voz doce,
muito doce, que dizia (as palavras lá estavam inesquecidas, inesquecíveis, ao fim de tantas repetições
durante a noite): «Cada um trabalha para todos os outros. Não podemos prescindir de ninguém. Mesmo
os Epsilões são úteis. Não poderíamos prescindir dos Epsilões. Cada um trabalha para todos os outros.
Não podemos prescindir de ninguém ... » Lenina lembrou-se do seu primeiro sobressalto de medo e de
surpresa; as especulações do seu espírito durante a meia hora que esteve acordada, e depois, sob a
influência das repetições sem fim, acalmando-se pouco a pouco, a aproximação sedativa, acariciadora,
deslizando a passos aveludados, do sono... - Suponho que, no fundo, os Epsilões não se importam de
ser Epsilões - disse em voz alta.